JULHO
O
hiato da fome.
O MÊS DO FENO NO ANO 1000.
ERA a primeira grande colheita
do ano, uma época de preocupação com o tempo e a necessidade de cortar e secar
a erva antes que a chuva pudesse estragá-la... e tudo para alimentar os
animais, já que a colheita do meio do verão não produzia comida para os
humanos. quando terminava o trabalho árduo de colher o feno, o lavrador
medieval descobria-se diante de outro período que era ainda mais difícil: o mês
mais duro do ano inteiro, na verdade, já que as colheitas da primavera ainda
não haviam amadurecido. Os ricos podiam sobreviver do que havia em seus
depósitos. Tinham dinheiro para pagar os preços mais altos cobrados pelos
estoques minguantes de alimentos.
Papoulas, cânhamo e joio eram colhidos,
secados e moídos para se produzir uma massa medieval conhecida como "pão
da loucura". Assim, mesmo enquanto os pobres sofriam a fome, é possível
que sua dieta lhes proporcionasse alguns paraísos exóticos e artificiais. A
teoria social no ano 1000 dividia a comunidade entre aqueles que trabalhavam
(os camponeses, mercadores e artesãos), aqueles que lutavam e administravam a justiça
(os reis e lordes), e aqueles que rezavam. No ano 1000, havia cerca de trinta
mosteiros espalhados pelos campos ingleses, de Carlisle no norte a St. German
na Cornualha.
Foram os monges beneditinos que levaram a
palavra de Deus para a Inglaterra em 597. Comandavam as grandes catedrais em
Canterbury, Rochester, Winchester e Worcester. O canto era a pulsação da
devoção religiosa na Inglaterra no ano 1000. Cada monge, ao apresentar sua
música, sabia que praticava para o dia glorioso em que se tornaria membro de um
dos coros de anjos no paraíso, elevando a voz na presença de Deus. O canto da
liturgia era uma das forças centralizadoras da Cristandade. Hoje é chamado em
geral canto gregoriano, de acordo com a tradição de que foi desenvolvido pelo
Papa Gregório o Grande, o mesmo Gregório que despachou os missionários para a
Inglaterra. O ingresso na vida monacal implicava se despedir para sempre de uma
noite completa de sono, já que duas horas depois da meia-noite era o momento fixado
para o ofício noturno.
Muitos prédios monásticos tinham escadas que
desciam direto do dormitório para a capela, a fim de atenuar o sofrimento de passar
do sono para o serviço de orações no frio e escuridão de uma noite de inverno.
Cinco outras horas de orações pontuavam o dia: Terça, Sexta, Nona, Vésperas e
Complina, que era às sete horas da noite no inverno e às oito no verão. Depois
disso, todos iam para a cama. Cada refeitório tinha um púlpito ou atril de onde
um dos irmãos lia, enquanto
seus companheiros comiam em silêncio. Um documento da época descreve os sinais
e a linguagem de sinais pelos quais os monges aprendiam a se comunicar, na
ausência de fala. São Benedito insistia em sua Norma que os monges deviam se
manter em silêncio pela maior parte possível do dia e da noite.
Os detalhes desses sinais chegaram até nós através
do manual anglo-saxão da linguagem de sinais monástica da catedral de
Canterbury. O manual foi quase com certeza produzido na mesma oficina de
escrita de Canterbury em que se fez o Calendário de Trabalho de Julius, mais ou
menos na mesma ocasião. Ao se ler a descrição dos 127 sinais diferentes em Monasteriales
Indicia, tem-se a impressão de que a hora das refeições num refeitório
beneditino era como uma reunião de técnicos de beisebol, todos gesticulando
furiosamente, apertando o lóbulo da orelha, esfregando dois dedos unidos pelos
lados do nariz, passando as mãos pela barriga. Tomamos conhecimento da
hierarquia no mosteiro. O sinal para o abade era encostar dois dedos na cabeça
e pegar uma mecha de cabelos... o que talvez indicasse que por baixo da
calvície da tonsura os monges deixassem os cabelos bem compridos. Mais de meia
dúzia de gestos para velas, círios, lanternas e lampiões testemunham um mundo
iluminado apenas pelo fogo. Mas esses sinais seculares ajudam a explicar por
que os mosteiros ingleses eram tão prósperos no ano 1000. Toda a geração de
estabelecimentos monásticos inspirados por Santo Agostinho e seus sucessores no
século VI foi destruída pelos vikings nas ondas de ataques, finalmente contidos
e revertidos pelo rei Alfred, na década de 890. Foi somente no século X que houve
um renascimento dos mosteiros. Os bispos introduziram orações pela família real
em suas liturgias, enquanto a família real transferia terras para a Igreja.
Com
isso, aumentou a grandiosidade das catedrais inglesas. A estante de escrita de
cada monge continha dois livros, o manuscrito em que trabalhava e o volume que
copiava, pois aprender no ano 1000 era copiar. Você não inovava. É graças a
essas cópias — e aos documentos preservados pelos árabes que controlavam o
Mediterrâneo — que podemos hoje ler as palavras de Platão, Aristóteles ou Júlio
César. E através das cópias também surgiu, pouco a pouco, o que hoje
descreveríamos como criatividade. O Calendário de Trabalho de Julius é um
exemplo disso. Há calendários similares do final dos tempos romanos em que cada
mês é ilustrado com uma tarefa prática específica. O texto do calendário de
Julius pode ser remontado a um século antes, no reinado do rei Athelstan, tio-avô
de Ethelred. A lista dos santos de cada dia de Athelstan não tinha ilustrações.
Já a lista de dias de festa incluía uma quantidade extraordinária de santos
associados ao Pas de Calais, a área rural há muito povoada no outro lado do
canal da Mancha. Isso sugeria que o poema em si, ou o escriba que o compusera,
vinha do norte da França. É verdade que a lista também incluía uma grande
quantidade de santos e dias de festa irlandeses. era a essência do sistema
medieval de aprendizado através do precedente e acréscimo: um bonito livro de
salmos flamengo, embelezado com uma lista de santos do norte da França,
convertida para versos, talvez por um monge irlandês, ou um escriba que
procurava por uma lista de santos da Irlanda... e tudo sob o patrocínio de um rei
inglês em Winchester.
Cem anos depois, o Calendário de Trabalho de
Julius levou o processo de elaboração um estágio à frente. Talvez Canterbury
tenha tomado emprestado o Saltério de Athelstan, com suas 365 linhas de versos,
sob um dos muitos esquemas de intercâmbio, pelos quais os mosteiros
restabelecidos da Inglaterra se emprestavam textos, a fim de reconstituir suas
bibliotecas. Sabemos que Canterbury possuía naqueles anos outro lindo documento
ilustrado, o chamado Saltério de Utrecht, criado por volta de 830 na diocese de
Rheims, no norte da França, e caracterizado por desenhos vividos e quase impressionistas
da vida cotidiana. Esses desenhos realistas extraíam seu tema de ilustrações
antigas. Portanto, é bem possível que o escriba também tivesse à sua vista os
desenhos ali, num estilo atraente e moderno. Lá fora, nos campos do sul da
Inglaterra, onde ele devia trabalhar regularmente, como parte de seus deveres
monacais, estavam os colhedores de feno usando suas foices. Assim, o escriba
começou a desenhar, captando a fadiga e o suor na testa do lavrador calvo,
fazendo uma pausa para respirar no lado direito do desenho de julho. No lado
oposto, outro lavador pára e afia sua foice com a pedra de amolar. Admiramos
hoje os desenhos desse artista talentoso e desconhecido pelo que nos dizem
sobre a vida na Inglaterra no início do século XI. O desenho do mês de
fevereiro mostra o podador na árvore da esquerda cortando de baixo para
cima, o que era a maneira correta de podar um galho pesado. Para os olhos
modernos, os desenhos são seculares. Não há halos nem cruzes. Não há
absolutamente nada de espiritual neles. As palavras no calendário podem se
elevar para o céu, mas os desenhos focalizam o homem de uma maneira
profundamente humanista. Todo mundo acreditava em alguma coisa no ano
1000... especialmente os pagãos e aqueles que a Igreja condenava como hereges.
O pecado da heresia era acreditar na coisa errada.
O Ano 1000
Robert Lacey
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