O FIM DE TUDO,
OU
UM NOVO COMEÇO?
Então vi descer do céu um anjo, com a
chave de um abismo e uma grande corrente nas mãos. Ele agarrou o dragão, a serpente
antiga, que é o Diabo ou Satanás, e o acorrentou por mil anos; jogou-o no
abismo, que fechou e lacrou por cima, a fim de que não pudesse mais seduzir as
nações até se passarem mil anos. Depois disso ele deve ser solto por algum
tempo. — Apocalipse 20:1-3
NÃO HAVIA COLUNISTAS DE
FOFOCAS NO ANO 1000. Mas se Vanity Fair existisse, com toda certeza
teria arrumado espaço para os escritos de Ralph Glaber. Era um monge borgonhês
que escreveu em cinco volumes uma história do seu tempo, nossa principal fonte
de informações sobre a maneira como as pessoas se sentiam no ano 1000 sobre a
mudança no calendário, de um milênio para o seguinte. A vida continuaria, mas
de alguma forma menos agradável, refletindo a libertação de Satanás, como São
João descrevera? Ralph Glaber escreveu sua história com essas indagações na
mente. Ele ingressou em seu primeiro mosteiro em 997. Com apenas uma dúzia de
anos, parece que tinha um comportamento perturbador, que o distinguia de seus companheiros.
Na aproximação do ano 1000, Glaber recolheu relatos sobre um cometa assustador
que cruzara o céu:
Apareceu no mês de setembro, não muito
depois do anoitecer, e permaneceu visível por quase três meses.
Brilhava com tanta intensidade que sua
luz parecia
iluminar a maior parte do céu.
Desaparecia quando o galo cantava. Mas se é uma nova estrela que Deus lança no
céu,
ou se Ele apenas aumenta o brilho
normal de outra estrela, só Ele pode decidir. (...) O que parece determinado
com o maior grau de certeza é que esse fenômeno no céu nunca aparece sem que os
homens o considerem o sinal de algum acontecimento misterioso e terrível. E, de
fato, um incêndio logo consumiu a igreja de São Miguel o Arcanjo, construída
num promontório no oceano (Mont-Saint - Michel, ao largo da costa da Bretanha),
que sempre foi o alvo de uma veneração especial no mundo inteiro.
Além da descrição do
espetacular cometa de 989 — conhecido hoje como cometa de Halley — Glaber
descreveu outros augúrios:
No sétimo ano do milênio... quase
todas as cidades da Itália e Gália foram devastadas por violentos incêndios. A
própria Roma foi em grande parte destruída pelo fogo. (...) Como uma só, (as
pessoas) soltaram um terrível grito e correram para se confessar ao Príncipe
dos Apóstolos.
"Tudo
isso combina com a profecia de São João, que
disse que o demônio ficaria livre
depois de mil anos", escreveu o monge.
Glaber conhecera o Demônio, que apareceu várias vezes ao pé de sua cama. Como o
monge recordou de suas visões, o Príncipe das Trevas era uma figura peluda,
preta, encurvada, nariz achatado, barbicha, lábios grossos.
Sussurrou pensamentos
sediciosos, numa tentativa de subverter
o santo homem: "Por que vocês monges perdem tempo com vigílias, jejuns e
mortificações?", arrulhou Lúcifer numa visita. "Um dia, uma hora de
arrependimento, é tudo o que se precisa para alcançar a bem-aventurança eterna.
(...) Então por que se dar ao trabalho de levantar ao som do sino, quando pode
continuar a dormir?"
Alguns historiadores têm citado esse típico episódio de
Dr. Fausto para desacreditar a confiabilidade do testemunho de Glaber. Glaber descreveu um mundo que prendera a
respiração, esperando o pior... e o pior não acontecera. Enquanto viajava pelos
campos, entre as grandes casas monásticas da Borgonha, o monge teve a
oportunidade de observar diretamente a explosão de construções eclesiásticas de
pedra que caracterizou o início do século XI. Aconteceu por todo o norte da Cristandade. Em termos estritos, o reino de Deus na Terra
não começou até a morte e ressurreição do Salvador, que ocorreu, segundo o Novo
Testamento, quando Jesus tinha trinta e três anos. Portanto, 1033 não podia ser
o ano em que as terríveis predições do Livro do Apocalipse se consumariam?
Depois de muitos prodígios que
irromperam no mundo antes, depois e em torno do milênio do Senhor Cristo [escreveu
Glaber], houve muitos homens capazes, de intelecto profundo, que previram
outros, igualmente grandes, à aproximação do milênio da Paixão do Senhor, e esses
acontecimentos assombrosos logo se manifestaram. O relato de Glaber é confirmado por outras fontes. Por
várias décadas, no meio do século XI, imensas multidões reuniam-se nos campos
abertos da França para venerar relíquias e prestar juramentos de paz. O
movimento tornou-se conhecido como "Paz de Deus". Historiadores
econômicos têm explicado o fenômeno em termos do desejo da igreja de proteger
suas propriedades numa época de pequenas guerras. A pregação populista incitava
os sentimentos contra os nobres à margem da lei. Foi em 1014, quando a guerra
entre Ethelred e os invasores dinamarqueses era mais encarniçada, que o maior
pregador da Inglaterra compôs seu famoso Sermão do Lobo Para o Inglês:
Caros amigos. (...) Este mundo tem
pressa e se aproxima
cada vez mais do seu fim. Sempre acontece
que quando
mais dura, pior se torna. E assim deve
ser, porque o advento
do Anticristo se torna ainda mais
terrível por causa dos pecados das pessoas. Com isso, será brutal e se
espalhará terrível pelo mundo inteiro.
Mesmo na tradução, sua prosa ainda conserva o ritmo compulsivo
de Jesse Jackson ou Martin Luther King:
O demônio enganou este povo demais.
Há pouca fé entre os homens, embora eles falem palavras justas. Crimes demais
foram praticados sem qualquer controle nesta terra. (...)As casas de Deus estão
privadas de seus ritos antigos, despojadas de tudo o que é apropriado. As
ordens religiosas há muito tempo que são desprezadas. As viúvas são obrigadas a
casar de uma maneira indigna. Muitas pessoas estão reduzidas à miséria.
Os pobres são enganados de uma maneira infame,
iludidos com intensa crueldade, em sua profunda inocência, vendidos para a
posse de estrangeiros em terras distantes.
Com
uma cruel injustiça, crianças pequenas são escravizadas por pequenos furtos
nesta nação. Os direitos dos homens livres foram suprimidos e os direitos dos escravos,
restritos, os direitos de caridade, negligenciados. Para resumir, as leis de
Deus são odiadas e seus mandamentos, desprezados.
As pessoas prendiam a respiração na Inglaterra, como
Glaber descreveu que ocorria na França. Datas não eram uma preocupação de
Wulfstan, mas sim os sofrimentos da Inglaterra. O arcebispo não tinha a menor
dúvida de que os vikings, em seus navios de dragão, agiam como instrumentos do
Anticristo:
"Nós lhes pagamos
sempre, mas eles nos humilham todos os dias. Devastam e incendeiam, saqueiam e
roubam, levam os despojos para sua frota. E pronto! Que outra coisa é clara e
evidente em todos esses acontecimentos, se não a ira de Deus?" Foram todos
escritos na suposição calma e inequívoca de que o mundo continuaria exatamente
como sempre fora. Não há um único testamento ou qualquer outro documento
anglo-saxão que faça qualquer referência a um iminente apocalipse.
Só os letrados se encontravam em posição de se preocuparem
com o que aconteceria quando o ano DCCCCLXXXXVIIIJ* se tornasse um simples M.
Teriam alguma dificuldade para concordar sobre o dia e a hora específicos em
que o momento deveria ser marcado: 25 de dezembro? 1o de janeiro? Dia da
Anunciação (25 de março)? O mundo mudava; e embora seja da natureza do mundo
mudar, o final do primeiro milênio proporcionou a algumas pessoas o estímulo
para considerar esse fato com uma seriedade extra, ponderando sobre o assombro e
desespero contidos no chavão eterno.
Em Roma, o inquietante novo milênio foi introduzido por
um novo e preocupado Papa. Uma leitura precisa do Livro do Apocalipse não prevê
que o mundo terminará com a conclusão de mil anos. Em vez disso, profetiza que o
Demônio será solto para cometer suas maldades. A medida que as pessoas olhavam
ao redor, em busca de indicações de onde ou quem o Anticristo podia ser,
fixaram-se no Papado e em seu novo e controvertido ocupante, Gerbert de
Aurillac, que assumira o título de Papa Silvestre I. Construiu um planetário,
cheio de esferas de madeira, a fim de determinar os movimentos dos corpos
celestes. Escreveu um tratado sobre o astrolábio. Se alguém personificou o
espírito ansioso de uma nova era foi esse homem inteligente e controvertido,
que fez tantos inimigos quanto Ralph Glaber, mas se elevou de uma maneira
significativa a alturas muito maiores.
O uso dos numerais romanos tinha um efeito paralisante
sobre os cálculos. Era bastante difícil somar MCXIV e CXCIX, mas multiplicar um
conjunto de letras por outro era virtualmente impossível. O estudioso Alcuíno
disse que 9.000 devia ser considerado o limite máximo, além do qual não era
mais possível calcular. Quando isso era escrito como MMMMMMMMM, pode-se
compreender o que ele dizia. O ábaco foi uma das novas e desconcertantes
dimensões para o pensamento matemático e geral, que também incluíram o zero e o
infinito. O florescimento de todas essas novas idéias estava no futuro... e não
chegaram à Inglaterra antes de 1066.
Mas graças a Gerbert de Aurillac, o Bill Gates do
primeiro milênio, chegaram na Cristandade quase que exatamente com o ano 1000.
Depois de sua chegada, a vida nunca mais seria a mesma.
E há também uma necessidade de que
cada um deva compreender de onde veio e o que é... e o que vai se tornar. —
Wulfstan, Arcebispo de York de 1002
a 1023
Por motivos grandiosos, banais ou apenas coincidentes,
a cultura que se desenvolvia no enevoado canto noroeste da Europa espalhou seus
valores por todo o mundo moderno... e os desenhos e versos latinos do Calendário
de Trabalho de Julius fornece algumas indicações sobre como e por que isso
aconteceu.
O Calendário é dedicado ao trabalho e oração. Sua
mensagem é a de que se deve trabalhar sem questionar, da mesma maneira como se
cultua Deus. Já nesses desenhos há insinuações do que aconteceria no Ocidente
industrial. O lavrador de janeiro conduz seus bois alimentados em baias como se
fossem máquinas. São animais, mas ele os usa como enormes motores que podiam
realizar muito mais trabalho em menos tempo do que seria possível apenas com o
trabalho humano, sem qualquer ajuda. Um fato menos atraente, os ingleses
estavam prestes a iniciarem uma longa fase de sua história em que não teriam
muito respeito pelos direitos dos outros. Dentro de cem anos, lançariam o seu
programa de expansão global, que começou com as Cruzadas, a oportunidade
aproveitada com a maior exultação pela Cristandade para devolver aos infiéis um
sólido gosto da agressão que a Europa já sofrera. Intitulado The Fortunes of
Men (literalmente As Fortunas dos
Homens), o poema era uma meditação sobre o destino — wyrd em englisc,
"o que será" —, pois depois de descrever a inocente alegria de mãe e
pai criando seus filhos o autor anônimo passava a examinar os diferentes destinos
que uma criança do primeiro milênio poderia encontrar no curso de sua vida:
A fome vai devorar um, a tempestade
afogar outro,
Um será
abatido pela lança, outro retalhado em batalha...
O poeta deixou a grande pergunta para os leitores: para
que lado sua vida irá... para a felicidade ou para alguma tragédia? E wyrd, a
resposta no ano 1000, era um desafio tão imponderável quanto o "What
Will Be", o que será, nos dias de hoje. Só Deus podia dizer... ou o
Destino. O que C. S. Lewis chamou de "esnobismo da cronologia" nos
encoraja a presumir que, só porque vivemos por acaso depois dos nossos
ancestrais e podemos ler livros que nos oferecem algum relato do que lhes
aconteceu, devemos também saber mais do que eles. Ao olharmos para trás, no
esforço de descobrir como as pessoas lidavam com as dificuldades cotidianas da
existência, podemos também considerar se, com toda a nossa sofisticação,
seríamos capazes de enfrentar os desafios do mundo deles com a mesma coragem,
bom humor e filosofia. O Calendário de Trabalho de Julius pode ser estudado na
Biblioteca Britânica em Londres, de acordo com as regras e condições de acesso
à Sala de Manuscrito. Está catalogado como Cotton MS Julius A.VI.
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