Em
1900, crepúsculo do século XIX, no auge da belle
époque fortalezense, o historiador Paulino Nogueira publicava uma crônica
sobre Fortaleza:
"... Passeio público, praças
arborizadas, templos majestosos, edifícios elegantes, tantas e tantas ruas
alinhadas, calçamento, iluminação a gás, linhas de bondes, hotéis, quiosques,
clubes, corrida de touros, a cavalo e à bicicleta e demais novidades!..."
A partir mesmo das décadas de 60 e
70, o perfil da cidade principia a sofrer alterações. Na década de 60, surgem o
Lazareto da Lagoa Funda e a Santa Casa de Misericórdia para zelarem pela saúde
pública, pois, como ressaltava o saber médico social então em constituição, sem
homens sadios para o trabalho não haveria produção de riqueza e progresso.
Na década seguinte, a remodelação
prosseguiria com a instalação da ferrovia para Baturité, a construção de um
novo cemitério, a criação da Academia francesa, a iluminação a gás e o plano
urbanístico de Adolfo Herbster.
Estreitando a distância e a
dependência do interior com a capital, o trem, um dos principais produtos do
avanço tecnológico do século XIX, reforçou ainda mais a positividade dos
efeitos sociais da noção de progresso.
A edificação de um novo cemitério, o
São João Batista, em local mais afastado, Jacarecanga, inscreve-se como mais
uma eficaz investida medicalizadora sobre a Cidade. Pouco tempo depois chegaria
a vez de idosos, loucos e meretrizes, acusados de potencialmente perigosos à
saúde e à segurança pública, serem também confinados fora da região central.
O
novo cemitério logo seria povoado com exuberantes túmulos em estilo gótico e
refinadas esculturas importas de anjos e figuras melancólicas. Nesse sentido, o
São João Batista revela tanto a monumentalidade da arte cemiterial da época
como o poderio dos setores dominantes. Também, na cidade dos vivos, essa
consagração econòmica evidenciava-se através do surgimento de imponentes
sobrados e palacetes.
A iluminação a gás carbono, por sua
vez, substituindo a de azeite de peixe, deu mais vida e sociabilidade às noites
fortalezenses. Por motivo de economia, por algum tempo estabeleceu-se o costume
de não acender os lampiões em noite de lua cheia.
A devastadora seca de 1877-1879,
porém, interrompeu o fluxo modernizador que se instaurava na Cidade.
Ao longo desses 3 anos fúnebres, com
a capital assistindo ao féretro diário de centenas de mortos, a urbe tornou-se
de pavor e pesar, não havendo clima para grandes obras.
O auge daquele teatro de horrores
foi o 10 de dezembro de 1878, quando o cemitério do Lazareto recebeu 1.004
vítimas da epidemia, ficando por muito tempo na memória da capital como "o
dia dos mil mortos". O medo alastrou-se no seio da população nativa de
Fortaleza, sobretudo quando a varíola vitimou a esposa do presidente da
província.
O perigoso trabalho de transportar e
sepultar os cadáveres dos abarracamentos até o cemitério do Lazareto, só
encontrou aceitação entre aqueles que compunham o crescente contingente de
miseráveis produzido pelo crescimento econômico excludente.
Tão
logo a seca e a varíola encerraram seu ciclo de devastação em 1879, no ano
seguinte a população pôde retirar seu luto e ser convidada a passear por dois
presentes dados à cidade: os bondes e o Passeio Público. Inaugurados em 1880,
ambos equipamentos reorientaram os usos e costumes nos espaços públicos.
Os bondes requereram maior extensão
de calçamento, diminuindo assim o areal que incomodava as pessoas e dificultava
o fluxo de veículos. Por conta disso, agora os habitantes podiam recorrer ao singelo
hábito de sentar em cadeiras nas calçadas ao entardecer.
Nas vias onde passavam, os bondes
engendraram um novo costume: o flerte entre passageiros e moças que das janelas
esperavam vê-los passar. Tal comportamento não escapou à verve espirituosa do
pintor e compositor Ramos Cotoco. Sua modinha O Bonde e as Moças fez sucesso em
1901:
"Na
rua onde passa o bonde,
moça
não pode engordar,
não
estuda não descansa
é
um penar...
Conheço
algumas que moram aonde o bonde não passa,
que
gritam fazendo troça esta rua é uma desgraça...
Aos
transeuntes
olha
com ardor,
namora
a todos, é um horror,
dos
passageiros ao condutor...
O Passeio Público de Fortaleza foi
edificado no antigo Campo do Paiol (depois denominado Praça dos Mártires).
Sobranceiro ao mar e bem arborizado, o logradouro foi murado e decorado com
estátuas representando divindades mitológicas gregas, canteiro, coreto, café
passarelas pavimentadas e longos bancos. A banda municipal embalava os namoros,
os flertes e o borboletear de um lado para outro dos passantes.
O logradouro manteve sua importância
enquanto área de lazer e sociabilidade até os anos 30, quando começou a sofrer
a concorrência de outras atrações como o cinema, os clubes e os banhos de mar.
Se
o processo de remodelação de Fortaleza tinha como espelho Paris, a metrópole
mais civilizada e charmosa do século XIX, e se uma de suas marcas registradas
eram os cafés onde modernos e literatos celebravam a alegria de viver, então a
capital cearense deveria tê-los também. Quatro elegantes cafés, em estilo
chalet francês, surgiram nos quatro cantos da Praça do Ferreira. Em seu entorno
estavam os principais estabelecimentos comerciais, repartições públicas e o
ponto de partida e chegada dos bondes.
Os cafés - Java, Elegante, Iracema e
do Comércio - a exemplo de seus congêneres parisienses, espalhavam mesas ao ar
livre e reuniam políticos, intelectuais e boêmios, principalmente a partir do
final da tarde. O preferido pela jovem intelectualidade boêmia era o Café Java.
Foi nele que Antônio Sales e parceiros tiveram, em 1892, a sublime ideia de
criar uma agremiação literária diferente: a Padaria Espiritual.
Em Fortaleza, encontrando terreno
fértil entre os grupos citadinos afluentes e ávidos por novidades importadas, o
culto ao afrancesamento se traduziu de várias formas e sentidos.
Aquela compulsiva ordenação
civilizatória que procurava identificar-se com a vida parisiense, beneficiando
apenas parte da cidade e de sua população, não passava despercebida dos setores
marginalizados. Ante a censura, o controle e a exclusão que sofriam à medida
que aquele processo avançava, reagiam através da irreverência, da galhofa, do
deboche ou mesmo da vaia, forma de repúdio utilizada pelo chamado "Ceará
Moleque".
O Programa de instalação da Padaria
Espiritual, com seus 48 artigos, lançado antes do primeiro número d'O Pão (seu
Jornal), de tão demolidor e impactante, já bastaria para consagrar a Padaria,
mesmo se ela não tivesse publicado mais nada. Misto de declaração de intenções
e regimento, o Programa revela todo o teor inovador do seu fazer literário,
assim como demarca a conduta crítico-amolecada que os padeiros deveriam assumir
sem medo.
A instituição asilar é mais uma
objetivação da medicina social, no caso, em sua vertente psiquiátrica, fruto do
combate aos focos sociais considerados periculosos à saúde pública.
Assim
como acontecera em outras cidades ocidentais, em Fortaleza, alguns anos antes
do Asilo de Parangaba se materializar, os "desarrazoados" eram presos
nas cadeias ou internados na Santa Casa de Misericórida.
Em 1891, houve a tentativa de
substituir os nomes das ruas por números, inspirada no exemplo de Nova Iorque.
Neste caso, era modernização demais e complicada; ninguém conseguia se entender
com a numeração das vias; a medida foi revogada poucos meses depois.
Guilherme Rocha foi o administrador
que mais se empenhou pelo aformoseamento de Fortaleza.
A primeira grande obra encetada
nesse sentido foi a inauguração do Mercado de Ferro, iniciado ainda na gestão
do Gen. Bezerril fontenele, mas concluído somente no governo de Accioly. O
edifício com decoração Art-Noveau trazia
a novidade do emprego do ferro, então em voga na Europa. Erevestido de
estrutura metálica importada da Escócia, o estabelecimento foi saudado pelo
intendente Guilherme Rocha como um "grande monumento". O Mercado de
Ferro hoje encontra-se desmembrado: um pavilhão está na Aldeota (mercado dos
Pinhões), e o outro na Aerolândia (Mercado da Aerolândia).
Tão logo o século XX chegou, a
intendência municipal empreendeu sua maior realização em termos de
embelezamento urbano: remodelou as três principais praças de Fortaleza, a do
Ferreira, a do Marquês do Herval Praça (José de Alencar, hoje) e a da Sé. Os
logradouros ganharam amplos jardins, recheados de estátuas de inspiração
clássica, canteiros de flores, coretos, longos bancos e vasos importados. Além
do Passeio Público, a cidade agora, tinha em seus três principais centros,
ilhas paradisíacas e seguras, onde os citadinos mais distintos pudessem se
sentir como se estivessem em Paris. Vale ressaltar, que durante o Carnaval, só
às elites era dado o direito de brincar ali dentro para não se misturarem com
os populares, os quais deveriam brincar apenas nos limites da praça.
A Praça Marquês do Herval foi
batizada de Jardim Nogueira Accioly, onde em 1910, surgiria o Theatro José de
Alencar, a mais imponente obra do governo aciolino.
A obra levou dois anos para ser
concluída e teve sua estrutura metálica em estilo art-noveau importada da Escócia. Até os oponentes de Accioly
tiveram que reconhecer a beleza da nova casa de espetáculos.
Se a irrupção da Primeira Guerra
Mundial (1914 - 1918), dizimando populações em proporções nunca vistas antes, é
considerada o marco que decreta o fim do modo de viver florido e eufórico que
caracterizou a belle époque europeia, podemos dizer que os graves conflitos de
1912 - 1914 em Fortaleza significaram o início do declínio da belle époque
experimentada na Capital.
Em 1915, uma nova seca despeja
milhares de "flagelados" na capital: o medo do contágio e do retorno
de epidemias de pronto fez criar, na periferia, um campo de concentração,
cercado para isolar os retirantes e mantê-los distantes do perímetro central.
Cumpre
salientar, que nesse mesmo período, aumenta o índice de delitos e transgressões
da Cidade. Frutos da penúria e da resistência do ascendente contingente de
pobres e miseráveis (causado pelo êxodo rural, desemprego, etc), cometidos, não
só por adultos, mas por crianças e adolescentes: entre 1917 e 1918 foram
detidos 77 menores por furto, embriaguez e imoralidade.
Ao correr dos anos 20, o Jacarecanga
lota-se de mansões e palacetes e torna-se, efetivamente, o primeiro bairro
elegante de Fortaleza. A seguir, viriam a Praia de Iracema (anos 30 e 40) e
Aldeota (de 40 e 50 em diante), delineando com maior visibilidade a
constituição de novos espaços burgueses, reforçando assim a segregação
sócio-espacial entre ricos e pobres na cidade.
Com os bondes eletrificados (1913),
toda uma rede de postes elétricos precisou ser instalada, começando a afetar a
harmonia visual e aformoseamento das ruas. Sem falar na necessidade de reduzir
o tamanho de alguns logradouros centrais, caso da Praça do Ferreira, em 1925,
para facilitar a passagem e o estacionamento das novas máquinas.
Os únicos meros toques de
embelezamento permitidos foram a instalação de retilíneos e estreitos canteiros
de flores nas extremidades da praça e um coreto coberto em seu centro.
A demolição dos cafés e do Jardim na
Praça do Ferreira, simboliza assim, o fim da vigência da belle époque em
Fortaleza. Amplos e bucólicos, os cafés e o Jardim 7 de Setembro agora eram
vistos como obstáculos que deveriam desaparecer para dar passagem ao
pragmatismo do vai-e-vem da multidão de transeuntes, automóveis e bondes
elétricos dos agitados anos 20.
O Centro da Cidade, portanto, já não
era mais o mesmo. A rua Formosa passou a se chamar Barão do Rio Branco e já
perdia sua formosura, deixando de ser via residencial para se tornar
eminentemente comercial.
Por sua vez, a abertura de um
sistema de avenidas, em 1927, ligando o Centro à Praia de Iracema (Praia do
Peixe até 1925), já anunciava a emergência, dos anos 30 em diante. O movimento
nesse sentido foi iniciado pela construção da bela mansão de veraneio, a Vila
Morena (hoje Estoril), em 1928, na Praia de Iracema.
O banho de mar, antes utilizado
apenas para fins de tratamento terapêutico recomendado pelos médicos, só pôde
tornar-se opção de lazer a partir da liberalização comportamental e vestuária
verificada nos anos 20 em diante - além do fato de que a praia, anteriormente
era apenas ocupada por gente pobre como pescadores e estivadores, agora
transformava-se em espaço residencial elegante e seguro.
Nos anos 20, para desespero de pais,
noivos e namorados, as mulheres abandonam aquela aparência que vigorava durante
séculos: as longas madeixas e os vestidos balões a cobrir pernas e braços, em
que vislumbrar o tornozelo feminino era o máximo de frisson erótico que os
homens podiam obter.
Duas revistas de moda e atualidades,
as sofisticadas A Jandaia e Ba-Ta-Clan, lançadas em 1924 e 1926, recheiam suas
edições discutindo questões como voto feminino e trabalhos antes restritos só
para homens e as novas e audaciosas modas femininas.
O
"espírito moleque"
Segundo o testemunho de
memorialistas que vivenciaram a Fortaleza do início do século XX, como Otacílio
de Azevedo, Raimundo de Menezes e o historiador Raimundo Girão, qualquer coisa
jocosa que ocorresse nos bondes ou na Praça do Ferreira ("sede social do
Ceará Moleque"), "fazia a delícia da arraia-miúda sempre atenta à comicidade".
Um tipo popular na entre 1915 e 1930
foi o bode Yoyô. Vendido por um retirante da seca do 15 a uma firma estrangeira
localizada na Praia de Iracema. Yoyô tinha o inusitado hábito de quase todo dia
passear sozinho, da praia até a Praça do Ferreira. Capaz de semelhante proeza
e, além disso, bastante sociável e brincalhão, Yoyô caiu nas graças da
população. Tornou-se tão popular que acabou ganhando "imunidade
fiscal", podendo circular à vontade, justo numa época em que animais,
loucos e demais "vagabundos" eram, via de regra, fiscalizados e
recolhidos do espaço público em nome da higiene e da segurança.
O falecimento do bode desencadeou
uma espécie de "transe coletivo" na cidade, pois além de causar
comoção pública fez com que a firma proprietária tivesse a ideia de empalhá-lo
e doá-lo ao Museu Histórico, e este, por sua vez, teve a irreverente decisão de
aceitá-lo. Yoyô ainda se encontra no Museu do Ceará, sendo uma das peças mais
procuradas pelos visitantes.
A presença de tipos populares
hilariantes também se verificaram em outras cidades brasileiras. Mas, o que
importa é que esse tipo de comportamento popular foi tão contundente em
Fortaleza a ponto de provocar tanto incômodo.
A seu favor conta não apenas o fato
de merecer um repúdio do projeto de ordenação civilizatória. Conta a absoluta
singularidade de ocorrências como esta, registrada em 1943: depois de uma
sequência de dias chuvosos, fenômeno raro em Fortaleza, motivo que causou
aborrecimento na população não acostumada a tanto aguaceiro, o sol resolveu dar
ao ar a sua graça... No instante em que apareceu por entre as nuvens, recebeu
estrondosa vaia dos populares que estavam na Praça do Ferreira!
A Revista A Jandaia fornece uma importante pista explicativa, quando afirma
não saber se aquilo se devia "à rebeldia de sua gente ou a irreverência do
seu povo."
(Retirei as fotos do site: fortalezaantiga.blogspot.com)
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