quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

A Belle Époque em Fortaleza




Em 1900, crepúsculo do século XIX, no auge da belle époque fortalezense, o historiador Paulino Nogueira publicava uma crônica sobre Fortaleza:
            "... Passeio público, praças arborizadas, templos majestosos, edifícios elegantes, tantas e tantas ruas alinhadas, calçamento, iluminação a gás, linhas de bondes, hotéis, quiosques, clubes, corrida de touros, a cavalo e à bicicleta e demais novidades!..."
            A partir mesmo das décadas de 60 e 70, o perfil da cidade principia a sofrer alterações. Na década de 60, surgem o Lazareto da Lagoa Funda e a Santa Casa de Misericórdia para zelarem pela saúde pública, pois, como ressaltava o saber médico social então em constituição, sem homens sadios para o trabalho não haveria produção de riqueza e progresso.
            Na década seguinte, a remodelação prosseguiria com a instalação da ferrovia para Baturité, a construção de um novo cemitério, a criação da Academia francesa, a iluminação a gás e o plano urbanístico de Adolfo Herbster.
            Estreitando a distância e a dependência do interior com a capital, o trem, um dos principais produtos do avanço tecnológico do século XIX, reforçou ainda mais a positividade dos efeitos sociais da noção de progresso.
            A edificação de um novo cemitério, o São João Batista, em local mais afastado, Jacarecanga, inscreve-se como mais uma eficaz investida medicalizadora sobre a Cidade. Pouco tempo depois chegaria a vez de idosos, loucos e meretrizes, acusados de potencialmente perigosos à saúde e à segurança pública, serem também confinados fora da região central.



O novo cemitério logo seria povoado com exuberantes túmulos em estilo gótico e refinadas esculturas importas de anjos e figuras melancólicas. Nesse sentido, o São João Batista revela tanto a monumentalidade da arte cemiterial da época como o poderio dos setores dominantes. Também, na cidade dos vivos, essa consagração econòmica evidenciava-se através do surgimento de imponentes sobrados e palacetes.
            A iluminação a gás carbono, por sua vez, substituindo a de azeite de peixe, deu mais vida e sociabilidade às noites fortalezenses. Por motivo de economia, por algum tempo estabeleceu-se o costume de não acender os lampiões em noite de lua cheia.
            A devastadora seca de 1877-1879, porém, interrompeu o fluxo modernizador que se instaurava na Cidade.
            Ao longo desses 3 anos fúnebres, com a capital assistindo ao féretro diário de centenas de mortos, a urbe tornou-se de pavor e pesar, não havendo clima para grandes obras.
            O auge daquele teatro de horrores foi o 10 de dezembro de 1878, quando o cemitério do Lazareto recebeu 1.004 vítimas da epidemia, ficando por muito tempo na memória da capital como "o dia dos mil mortos". O medo alastrou-se no seio da população nativa de Fortaleza, sobretudo quando a varíola vitimou a esposa do presidente da província.
            O perigoso trabalho de transportar e sepultar os cadáveres dos abarracamentos até o cemitério do Lazareto, só encontrou aceitação entre aqueles que compunham o crescente contingente de miseráveis produzido pelo crescimento econômico excludente.








Tão logo a seca e a varíola encerraram seu ciclo de devastação em 1879, no ano seguinte a população pôde retirar seu luto e ser convidada a passear por dois presentes dados à cidade: os bondes e o Passeio Público. Inaugurados em 1880, ambos equipamentos reorientaram os usos e costumes nos espaços públicos.
            Os bondes requereram maior extensão de calçamento, diminuindo assim o areal que incomodava as pessoas e dificultava o fluxo de veículos. Por conta disso, agora os habitantes podiam recorrer ao singelo hábito de sentar em cadeiras nas calçadas ao entardecer.
            Nas vias onde passavam, os bondes engendraram um novo costume: o flerte entre passageiros e moças que das janelas esperavam vê-los passar. Tal comportamento não escapou à verve espirituosa do pintor e compositor Ramos Cotoco. Sua modinha O Bonde e as Moças fez sucesso em 1901:
"Na rua onde passa o bonde,
moça não pode engordar,
não estuda não descansa
é um penar...
Conheço algumas que moram aonde o bonde não passa,
que gritam fazendo troça esta rua é uma desgraça...
Aos transeuntes
olha com ardor,
namora a todos, é um horror,
dos passageiros ao condutor...
            O Passeio Público de Fortaleza foi edificado no antigo Campo do Paiol (depois denominado Praça dos Mártires). Sobranceiro ao mar e bem arborizado, o logradouro foi murado e decorado com estátuas representando divindades mitológicas gregas, canteiro, coreto, café passarelas pavimentadas e longos bancos. A banda municipal embalava os namoros, os flertes e o borboletear de um lado para outro dos passantes.
            O logradouro manteve sua importância enquanto área de lazer e sociabilidade até os anos 30, quando começou a sofrer a concorrência de outras atrações como o cinema, os clubes e os banhos de mar.






Se o processo de remodelação de Fortaleza tinha como espelho Paris, a metrópole mais civilizada e charmosa do século XIX, e se uma de suas marcas registradas eram os cafés onde modernos e literatos celebravam a alegria de viver, então a capital cearense deveria tê-los também. Quatro elegantes cafés, em estilo chalet francês, surgiram nos quatro cantos da Praça do Ferreira. Em seu entorno estavam os principais estabelecimentos comerciais, repartições públicas e o ponto de partida e chegada dos bondes.
            Os cafés - Java, Elegante, Iracema e do Comércio - a exemplo de seus congêneres parisienses, espalhavam mesas ao ar livre e reuniam políticos, intelectuais e boêmios, principalmente a partir do final da tarde. O preferido pela jovem intelectualidade boêmia era o Café Java. Foi nele que Antônio Sales e parceiros tiveram, em 1892, a sublime ideia de criar uma agremiação literária diferente: a Padaria Espiritual.
            Em Fortaleza, encontrando terreno fértil entre os grupos citadinos afluentes e ávidos por novidades importadas, o culto ao afrancesamento se traduziu de várias formas e sentidos.
            Aquela compulsiva ordenação civilizatória que procurava identificar-se com a vida parisiense, beneficiando apenas parte da cidade e de sua população, não passava despercebida dos setores marginalizados. Ante a censura, o controle e a exclusão que sofriam à medida que aquele processo avançava, reagiam através da irreverência, da galhofa, do deboche ou mesmo da vaia, forma de repúdio utilizada pelo chamado "Ceará Moleque".
            O Programa de instalação da Padaria Espiritual, com seus 48 artigos, lançado antes do primeiro número d'O Pão (seu Jornal), de tão demolidor e impactante, já bastaria para consagrar a Padaria, mesmo se ela não tivesse publicado mais nada. Misto de declaração de intenções e regimento, o Programa revela todo o teor inovador do seu fazer literário, assim como demarca a conduta crítico-amolecada que os padeiros deveriam assumir  sem medo.
            A instituição asilar é mais uma objetivação da medicina social, no caso, em sua vertente psiquiátrica, fruto do combate aos focos sociais considerados periculosos à saúde pública.




Assim como acontecera em outras cidades ocidentais, em Fortaleza, alguns anos antes do Asilo de Parangaba se materializar, os "desarrazoados" eram presos nas cadeias ou internados na Santa Casa de Misericórida.
            Em 1891, houve a tentativa de substituir os nomes das ruas por números, inspirada no exemplo de Nova Iorque. Neste caso, era modernização demais e complicada; ninguém conseguia se entender com a numeração das vias; a medida foi revogada poucos meses depois.
            Guilherme Rocha foi o administrador que mais se empenhou pelo aformoseamento de Fortaleza.
            A primeira grande obra encetada nesse sentido foi a inauguração do Mercado de Ferro, iniciado ainda na gestão do Gen. Bezerril fontenele, mas concluído somente no governo de Accioly. O edifício com decoração Art-Noveau trazia a novidade do emprego do ferro, então em voga na Europa. Erevestido de estrutura metálica importada da Escócia, o estabelecimento foi saudado pelo intendente Guilherme Rocha como um "grande monumento". O Mercado de Ferro hoje encontra-se desmembrado: um pavilhão está na Aldeota (mercado dos Pinhões), e o outro na Aerolândia (Mercado da Aerolândia).
            Tão logo o século XX chegou, a intendência municipal empreendeu sua maior realização em termos de embelezamento urbano: remodelou as três principais praças de Fortaleza, a do Ferreira, a do Marquês do Herval Praça (José de Alencar, hoje) e a da Sé. Os logradouros ganharam amplos jardins, recheados de estátuas de inspiração clássica, canteiros de flores, coretos, longos bancos e vasos importados. Além do Passeio Público, a cidade agora, tinha em seus três principais centros, ilhas paradisíacas e seguras, onde os citadinos mais distintos pudessem se sentir como se estivessem em Paris. Vale ressaltar, que durante o Carnaval, só às elites era dado o direito de brincar ali dentro para não se misturarem com os populares, os quais deveriam brincar apenas nos limites da praça.
            A Praça Marquês do Herval foi batizada de Jardim Nogueira Accioly, onde em 1910, surgiria o Theatro José de Alencar, a mais imponente obra do governo aciolino.
            A obra levou dois anos para ser concluída e teve sua estrutura metálica em estilo art-noveau importada da Escócia. Até os oponentes de Accioly tiveram que reconhecer a beleza da nova casa de espetáculos.
            Se a irrupção da Primeira Guerra Mundial (1914 - 1918), dizimando populações em proporções nunca vistas antes, é considerada o marco que decreta o fim do modo de viver florido e eufórico que caracterizou a belle époque europeia, podemos dizer que os graves conflitos de 1912 - 1914 em Fortaleza significaram o início do declínio da belle époque experimentada na Capital.
            Em 1915, uma nova seca despeja milhares de "flagelados" na capital: o medo do contágio e do retorno de epidemias de pronto fez criar, na periferia, um campo de concentração, cercado para isolar os retirantes e mantê-los distantes do perímetro central.



Cumpre salientar, que nesse mesmo período, aumenta o índice de delitos e transgressões da Cidade. Frutos da penúria e da resistência do ascendente contingente de pobres e miseráveis (causado pelo êxodo rural, desemprego, etc), cometidos, não só por adultos, mas por crianças e adolescentes: entre 1917 e 1918 foram detidos 77 menores por furto, embriaguez e imoralidade.
            Ao correr dos anos 20, o Jacarecanga lota-se de mansões e palacetes e torna-se, efetivamente, o primeiro bairro elegante de Fortaleza. A seguir, viriam a Praia de Iracema (anos 30 e 40) e Aldeota (de 40 e 50 em diante), delineando com maior visibilidade a constituição de novos espaços burgueses, reforçando assim a segregação sócio-espacial entre ricos e pobres na cidade.
            Com os bondes eletrificados (1913), toda uma rede de postes elétricos precisou ser instalada, começando a afetar a harmonia visual e aformoseamento das ruas. Sem falar na necessidade de reduzir o tamanho de alguns logradouros centrais, caso da Praça do Ferreira, em 1925, para facilitar a passagem e o estacionamento das novas máquinas.
            Os únicos meros toques de embelezamento permitidos foram a instalação de retilíneos e estreitos canteiros de flores nas extremidades da praça e um coreto coberto em seu centro.
            A demolição dos cafés e do Jardim na Praça do Ferreira, simboliza assim, o fim da vigência da belle époque em Fortaleza. Amplos e bucólicos, os cafés e o Jardim 7 de Setembro agora eram vistos como obstáculos que deveriam desaparecer para dar passagem ao pragmatismo do vai-e-vem da multidão de transeuntes, automóveis e bondes elétricos dos agitados anos 20.
            O Centro da Cidade, portanto, já não era mais o mesmo. A rua Formosa passou a se chamar Barão do Rio Branco e já perdia sua formosura, deixando de ser via residencial para se tornar eminentemente comercial.
            Por sua vez, a abertura de um sistema de avenidas, em 1927, ligando o Centro à Praia de Iracema (Praia do Peixe até 1925), já anunciava a emergência, dos anos 30 em diante. O movimento nesse sentido foi iniciado pela construção da bela mansão de veraneio, a Vila Morena (hoje Estoril), em 1928, na Praia de Iracema.
            O banho de mar, antes utilizado apenas para fins de tratamento terapêutico recomendado pelos médicos, só pôde tornar-se opção de lazer a partir da liberalização comportamental e vestuária verificada nos anos 20 em diante - além do fato de que a praia, anteriormente era apenas ocupada por gente pobre como pescadores e estivadores, agora transformava-se em espaço residencial elegante e seguro.
            Nos anos 20, para desespero de pais, noivos e namorados, as mulheres abandonam aquela aparência que vigorava durante séculos: as longas madeixas e os vestidos balões a cobrir pernas e braços, em que vislumbrar o tornozelo feminino era o máximo de frisson erótico que os homens podiam obter.
            Duas revistas de moda e atualidades, as sofisticadas A Jandaia e Ba-Ta-Clan, lançadas em 1924 e 1926, recheiam suas edições discutindo questões como voto feminino e trabalhos antes restritos só para homens e as novas e audaciosas modas femininas.

O "espírito moleque"

            Segundo o testemunho de memorialistas que vivenciaram a Fortaleza do início do século XX, como Otacílio de Azevedo, Raimundo de Menezes e o historiador Raimundo Girão, qualquer coisa jocosa que ocorresse nos bondes ou na Praça do Ferreira ("sede social do Ceará Moleque"), "fazia a delícia da arraia-miúda sempre atenta à comicidade".
            Um tipo popular na entre 1915 e 1930 foi o bode Yoyô. Vendido por um retirante da seca do 15 a uma firma estrangeira localizada na Praia de Iracema. Yoyô tinha o inusitado hábito de quase todo dia passear sozinho, da praia até a Praça do Ferreira. Capaz de semelhante proeza e, além disso, bastante sociável e brincalhão, Yoyô caiu nas graças da população. Tornou-se tão popular que acabou ganhando "imunidade fiscal", podendo circular à vontade, justo numa época em que animais, loucos e demais "vagabundos" eram, via de regra, fiscalizados e recolhidos do espaço público em nome da higiene e da segurança.
            O falecimento do bode desencadeou uma espécie de "transe coletivo" na cidade, pois além de causar comoção pública fez com que a firma proprietária tivesse a ideia de empalhá-lo e doá-lo ao Museu Histórico, e este, por sua vez, teve a irreverente decisão de aceitá-lo. Yoyô ainda se encontra no Museu do Ceará, sendo uma das peças mais procuradas pelos visitantes.
            A presença de tipos populares hilariantes também se verificaram em outras cidades brasileiras. Mas, o que importa é que esse tipo de comportamento popular foi tão contundente em Fortaleza a ponto de provocar tanto incômodo.
            A seu favor conta não apenas o fato de merecer um repúdio do projeto de ordenação civilizatória. Conta a absoluta singularidade de ocorrências como esta, registrada em 1943: depois de uma sequência de dias chuvosos, fenômeno raro em Fortaleza, motivo que causou aborrecimento na população não acostumada a tanto aguaceiro, o sol resolveu dar ao ar a sua graça... No instante em que apareceu por entre as nuvens, recebeu estrondosa vaia dos populares que estavam na Praça do Ferreira!
            A Revista A Jandaia fornece uma importante pista explicativa, quando afirma não saber se aquilo se devia "à rebeldia de sua gente ou a irreverência do seu povo."


(Retirei as fotos do site: fortalezaantiga.blogspot.com)

Nenhum comentário:

Postar um comentário