quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

DEZEMBRO


O FIM DE TUDO,
OU UM NOVO COMEÇO?
Então vi descer do céu um anjo, com a chave de um abismo e uma grande corrente nas mãos. Ele agarrou o dragão, a serpente antiga, que é o Diabo ou Satanás, e o acorrentou por mil anos; jogou-o no abismo, que fechou e lacrou por cima, a fim de que não pudesse mais seduzir as nações até se passarem mil anos. Depois disso ele deve ser solto por algum tempo. — Apocalipse 20:1-3
NÃO HAVIA COLUNISTAS DE FOFOCAS NO ANO 1000. Mas se Vanity Fair existisse, com toda certeza teria arrumado espaço para os escritos de Ralph Glaber. Era um monge borgonhês que escreveu em cinco volumes uma história do seu tempo, nossa principal fonte de informações sobre a maneira como as pessoas se sentiam no ano 1000 sobre a mudança no calendário, de um milênio para o seguinte. A vida continuaria, mas de alguma forma menos agradável, refletindo a libertação de Satanás, como São João descrevera? Ralph Glaber escreveu sua história com essas indagações na mente. Ele ingressou em seu primeiro mosteiro em 997. Com apenas uma dúzia de anos, parece que tinha um comportamento perturbador, que o distinguia de seus companheiros. Na aproximação do ano 1000, Glaber recolheu relatos sobre um cometa assustador que cruzara o céu:
Apareceu no mês de setembro, não muito depois do anoitecer, e permaneceu visível por quase três meses.
Brilhava com tanta intensidade que sua luz parecia
iluminar a maior parte do céu. Desaparecia quando o galo cantava. Mas se é uma nova estrela que Deus lança no céu,
ou se Ele apenas aumenta o brilho normal de outra estrela, só Ele pode decidir. (...) O que parece determinado com o maior grau de certeza é que esse fenômeno no céu nunca aparece sem que os homens o considerem o sinal de algum acontecimento misterioso e terrível. E, de fato, um incêndio logo consumiu a igreja de São Miguel o Arcanjo, construída num promontório no oceano (Mont-Saint - Michel, ao largo da costa da Bretanha), que sempre foi o alvo de uma veneração especial no mundo inteiro.



Além da descrição do espetacular cometa de 989 — conhecido hoje como cometa de Halley — Glaber descreveu outros augúrios:
No sétimo ano do milênio... quase todas as cidades da Itália e Gália foram devastadas por violentos incêndios. A própria Roma foi em grande parte destruída pelo fogo. (...) Como uma só, (as pessoas) soltaram um terrível grito e correram para se confessar ao Príncipe dos Apóstolos.
 "Tudo isso combina com a profecia de São João, que disse que o demônio ficaria livre depois de mil anos", escreveu o monge.  Glaber conhecera o Demônio, que apareceu várias vezes ao pé de sua cama. Como o monge recordou de suas visões, o Príncipe das Trevas era uma figura peluda, preta, encurvada, nariz achatado, barbicha, lábios grossos.
Sussurrou pensamentos sediciosos, numa  tentativa de subverter o santo homem: "Por que vocês monges perdem tempo com vigílias, jejuns e mortificações?", arrulhou Lúcifer numa visita. "Um dia, uma hora de arrependimento, é tudo o que se precisa para alcançar a bem-aventurança eterna. (...) Então por que se dar ao trabalho de levantar ao som do sino, quando pode continuar a dormir?"
            Alguns historiadores têm citado esse típico episódio de Dr. Fausto para desacreditar a confiabilidade do testemunho de Glaber.  Glaber descreveu um mundo que prendera a respiração, esperando o pior... e o pior não acontecera. Enquanto viajava pelos campos, entre as grandes casas monásticas da Borgonha, o monge teve a oportunidade de observar diretamente a explosão de construções eclesiásticas de pedra que caracterizou o início do século XI. Aconteceu por todo o norte da Cristandade.  Em termos estritos, o reino de Deus na Terra não começou até a morte e ressurreição do Salvador, que ocorreu, segundo o Novo Testamento, quando Jesus tinha trinta e três anos. Portanto, 1033 não podia ser o ano em que as terríveis predições do Livro do Apocalipse se consumariam?
Depois de muitos prodígios que irromperam no mundo antes, depois e em torno do milênio do Senhor Cristo [escreveu Glaber], houve muitos homens capazes, de intelecto profundo, que previram outros, igualmente grandes, à aproximação do milênio da Paixão do Senhor, e esses acontecimentos assombrosos logo se manifestaram. O relato de Glaber é confirmado por outras fontes. Por várias décadas, no meio do século XI, imensas multidões reuniam-se nos campos abertos da França para venerar relíquias e prestar juramentos de paz. O movimento tornou-se conhecido como "Paz de Deus". Historiadores econômicos têm explicado o fenômeno em termos do desejo da igreja de proteger suas propriedades numa época de pequenas guerras. A pregação populista incitava os sentimentos contra os nobres à margem da lei. Foi em 1014, quando a guerra entre Ethelred e os invasores dinamarqueses era mais encarniçada, que o maior pregador da Inglaterra compôs seu famoso Sermão do Lobo Para o Inglês:
Caros amigos. (...) Este mundo tem pressa e se aproxima
cada vez mais do seu fim. Sempre acontece que quando
mais dura, pior se torna. E assim deve ser, porque o advento
do Anticristo se torna ainda mais terrível por causa dos pecados das pessoas. Com isso, será brutal e se espalhará terrível pelo mundo inteiro.



            Mesmo na tradução, sua prosa ainda conserva o ritmo compulsivo de Jesse Jackson ou Martin Luther King:
            O demônio enganou este povo demais. Há pouca fé entre os homens, embora eles falem palavras justas. Crimes demais foram praticados sem qualquer controle nesta terra. (...)As casas de Deus estão privadas de seus ritos antigos, despojadas de tudo o que é apropriado. As ordens religiosas há muito tempo que são desprezadas. As viúvas são obrigadas a casar de uma maneira indigna. Muitas pessoas estão reduzidas à miséria.
            Os pobres são enganados de uma maneira infame, iludidos com intensa crueldade, em sua profunda inocência, vendidos para a posse de estrangeiros em terras distantes.
            Com uma cruel injustiça, crianças pequenas são escravizadas por pequenos furtos nesta nação. Os direitos dos homens livres foram suprimidos e os direitos dos escravos, restritos, os direitos de caridade, negligenciados. Para resumir, as leis de Deus são odiadas e seus mandamentos, desprezados.
            As pessoas prendiam a respiração na Inglaterra, como Glaber descreveu que ocorria na França. Datas não eram uma preocupação de Wulfstan, mas sim os sofrimentos da Inglaterra. O arcebispo não tinha a menor dúvida de que os vikings, em seus navios de dragão, agiam como instrumentos do Anticristo:
"Nós lhes pagamos sempre, mas eles nos humilham todos os dias. Devastam e incendeiam, saqueiam e roubam, levam os despojos para sua frota. E pronto! Que outra coisa é clara e evidente em todos esses acontecimentos, se não a ira de Deus?" Foram todos escritos na suposição calma e inequívoca de que o mundo continuaria exatamente como sempre fora. Não há um único testamento ou qualquer outro documento anglo-saxão que faça qualquer referência a um iminente apocalipse.
            Só os letrados se encontravam em posição de se preocuparem com o que aconteceria quando o ano DCCCCLXXXXVIIIJ* se tornasse um simples M. Teriam alguma dificuldade para concordar sobre o dia e a hora específicos em que o momento deveria ser marcado: 25 de dezembro? 1o de janeiro? Dia da Anunciação (25 de março)? O mundo mudava; e embora seja da natureza do mundo mudar, o final do primeiro milênio proporcionou a algumas pessoas o estímulo para considerar esse fato com uma seriedade extra, ponderando sobre o assombro e desespero contidos no chavão eterno.
            Em Roma, o inquietante novo milênio foi introduzido por um novo e preocupado Papa. Uma leitura precisa do Livro do Apocalipse não prevê que o mundo terminará com a conclusão de mil anos. Em vez disso, profetiza que o Demônio será solto para cometer suas maldades. A medida que as pessoas olhavam ao redor, em busca de indicações de onde ou quem o Anticristo podia ser, fixaram-se no Papado e em seu novo e controvertido ocupante, Gerbert de Aurillac, que assumira o título de Papa Silvestre I. Construiu um planetário, cheio de esferas de madeira, a fim de determinar os movimentos dos corpos celestes. Escreveu um tratado sobre o astrolábio. Se alguém personificou o espírito ansioso de uma nova era foi esse homem inteligente e controvertido, que fez tantos inimigos quanto Ralph Glaber, mas se elevou de uma maneira significativa a alturas muito maiores.
            O uso dos numerais romanos tinha um efeito paralisante sobre os cálculos. Era bastante difícil somar MCXIV e CXCIX, mas multiplicar um conjunto de letras por outro era virtualmente impossível. O estudioso Alcuíno disse que 9.000 devia ser considerado o limite máximo, além do qual não era mais possível calcular. Quando isso era escrito como MMMMMMMMM, pode-se compreender o que ele dizia. O ábaco foi uma das novas e desconcertantes dimensões para o pensamento matemático e geral, que também incluíram o zero e o infinito. O florescimento de todas essas novas idéias estava no futuro... e não chegaram à Inglaterra antes de 1066.



            Mas graças a Gerbert de Aurillac, o Bill Gates do primeiro milênio, chegaram na Cristandade quase que exatamente com o ano 1000. Depois de sua chegada, a vida nunca mais seria a mesma.
E há também uma necessidade de que cada um deva compreender de onde veio e o que é... e o que vai se tornar. — Wulfstan, Arcebispo de York de 1002 a 1023
            Por motivos grandiosos, banais ou apenas coincidentes, a cultura que se desenvolvia no enevoado canto noroeste da Europa espalhou seus valores por todo o mundo moderno... e os desenhos e versos latinos do Calendário de Trabalho de Julius fornece algumas indicações sobre como e por que isso aconteceu.
            O Calendário é dedicado ao trabalho e oração. Sua mensagem é a de que se deve trabalhar sem questionar, da mesma maneira como se cultua Deus. Já nesses desenhos há insinuações do que aconteceria no Ocidente industrial. O lavrador de janeiro conduz seus bois alimentados em baias como se fossem máquinas. São animais, mas ele os usa como enormes motores que podiam realizar muito mais trabalho em menos tempo do que seria possível apenas com o trabalho humano, sem qualquer ajuda. Um fato menos atraente, os ingleses estavam prestes a iniciarem uma longa fase de sua história em que não teriam muito respeito pelos direitos dos outros. Dentro de cem anos, lançariam o seu programa de expansão global, que começou com as Cruzadas, a oportunidade aproveitada com a maior exultação pela Cristandade para devolver aos infiéis um sólido gosto da agressão que a Europa já sofrera. Intitulado The Fortunes of Men  (literalmente As Fortunas dos Homens), o poema era uma meditação sobre o destino — wyrd em englisc, "o que será" —, pois depois de descrever a inocente alegria de mãe e pai criando seus filhos o autor anônimo passava a examinar os diferentes destinos que uma criança do primeiro milênio poderia encontrar no curso de sua vida:
A fome vai devorar um, a tempestade afogar outro,
Um será abatido pela lança, outro retalhado em batalha...



            O poeta deixou a grande pergunta para os leitores: para que lado sua vida irá... para a felicidade ou para alguma tragédia? E wyrd, a resposta no ano 1000, era um desafio tão imponderável quanto o "What Will Be", o que será, nos dias de hoje. Só Deus podia dizer... ou o Destino. O que C. S. Lewis chamou de "esnobismo da cronologia" nos encoraja a presumir que, só porque vivemos por acaso depois dos nossos ancestrais e podemos ler livros que nos oferecem algum relato do que lhes aconteceu, devemos também saber mais do que eles. Ao olharmos para trás, no esforço de descobrir como as pessoas lidavam com as dificuldades cotidianas da existência, podemos também considerar se, com toda a nossa sofisticação, seríamos capazes de enfrentar os desafios do mundo deles com a mesma coragem, bom humor e filosofia. O Calendário de Trabalho de Julius pode ser estudado na Biblioteca Britânica em Londres, de acordo com as regras e condições de acesso à Sala de Manuscrito. Está catalogado como Cotton MS Julius A.VI.


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