SETEMBRO
PAGÃOS
E PANNAGE
Havia alguns javalis selvagens nas florestas da
Inglaterra no ano 1000, assim como uns poucos lobos sobreviventes, mas muito
mais numerosas eram as manadas de porcos que vagueavam livres pelas matas. Os
aldeões começavam a recolher os porcos quando setembro anunciava a aproximação do
inverno.
Depois de concluída a colheita, nos tempos medievais
mais antigos, cada lavrador e chefe de família tinha de calcular a equação
básica da sobrevivência através do inverno. Quanto tempo a despensa duraria,
que animais pareciam ter a possibilidade de consumir mais forragem do que sua expectativa
de vida podia justificar? Setembro era o mês em que os animais doentes e velhos
eram convertidos em salames e pastelões. O porco era um fator crucial nesses
cálculos. O outono era a época em que os porcos ficavam mais gordos. Podia-se
aproveitar virtualmente todas as partes do porco medieval, o qual, vagueando
solto e muitas vezes acasalando com seus primos selvagens, tinha uma nítida
aparência de javali. O revestimento do estômago proporcionava a tripa.
Os intestinos ofereciam a pele para salames, enquanto
o sangue era o principal ingrediente para o black pudding, um salame
escuro feito com sangue de porco e pedaços de toucinho. Pannage era o
termo usado para a dieta natural dos porcos que se alimentavam sem depender de
seus donos. O valor dos bosques medievais era muitas vezes expresso em termos
de quantos porcos um determinado setor era capaz de sustentar. Os animais de
criação eram bem menores no ano 1000 do que são hoje... e eram também menores
do que haviam sido seis séculos antes. Escavações arqueológicas revelam que os
ossos de vacas, porcas e ovelhas vão se tornando cada vez menores ao longo dos
séculos.
Voltam a ficar maiores com a introdução dos
princípios de criação econômica no final da Idade Média. Os anglo-saxões amavam
seus animais. Assim como podiam reconhecer os animais dos vizinhos, também
costumavam ter um nome carinhoso para cada criatura em sua família ampliada.
Teriam adorado os animais antropomórficos de Walt Disney. Seus poemas sentiam
prazer em atribuir características humanas, como determinação e astúcia, aos
membros do reino animal. Consideravam-nos companheiros de ocupação de um mundo
em que os interesses humanos e animais se misturavam.
Os filhos da Mãe Natureza eram todos seus irmãos e irmãs.
Setembro era o mês em que o pomar (orchard em inglês) produzia a sua melhor
colheita. A abadia de Ely era famosa por seus vinhedos, além de seus pomares e
uma estufa em que cultivava diversas variedades de árvores frutíferas. Macieiras,
pereiras, ameixeiras, figueiras, marmeleiros e amoreiras estavam incluídos na
planta do jardim para um grande mosteiro projetado, embora nunca chegasse a ser
construído, para os missionários irlandeses na margem do lago Constance, na Suíça.
A norma
de São Bento para que os monges não consumissem carne foi interpretada pela
maioria das comunidades como se referindo a animais de grande porte e quatro
patas. Portanto, as aves eram consideradas fora da proibição, assim como os coelhos,
que os normandos levaram para a Inglaterra depois de 1066. Mas a dieta
monástica ainda tendia a ser não-carnívora, com um elevado conteúdo de
laticínios e uma saudável proporção de nozes. Também cultivavam cebola,
alho-poró, aipo, rabanete, cenoura, alho, cebolinha, pastinaca, repolho, salsa,
endro, cerefólio, coentro, papoula e alface. Esses frutos e hortaliças eram
quase que, com certeza, mais saborosos do que seus equivalentes modernos, mas
também, como o gado do ano 1000, eram consideravelmente menores.
Não havia espinafre. Este só apareceu nas hortas
européias quando as sementes foram trazidas pelos Cruzados, no século XII.
Brócolis, couve-flor, vagem e couve-de-bruxelas foram desenvolvidos em séculos
posteriores, por gerações subseqüentes de horticultores. Também não havia
batata e tomate. Embora os livros de receitas descrevam possets (bebida
de leite quente, cerveja e vinho, para curar resfriados) e infusões de ervas,
não existia nenhum dos estimulantes que ainda seriam importados, chá, café e
chocolate. A maior falha dietética pelos padrões modernos era a ausência de qualquer
tipo de açúcar. Registros venezianos descrevem um carregamento de
cana-de-açúcar chegando a Veneza pela primeira vez em 996, provavelmente
da Pérsia ou Egito,96 mas o açúcar não foi mais importado para a Europa até
o final da Idade Média. Não dominou o paladar europeu, com sua atração por
doces, até o desenvolvimento das plantações de cana no Caribe, no século XVII.
Os esqueletos anglo-saxões são notáveis pela ausência de cáries dentária O mel
era a principal fonte de doçura no ano 1000.
Era tão precioso que quase virou uma moeda corrente
na Inglaterra medieval. Era um dia de sorte quando um enxame de abelhas se instalava
em seu telhado de colmo:
Há um enxame de abelhas lá fora,
Voe para cá, meu pequeno gado,
Em paz abençoada, sob a proteção de
Deus,
Venha
para o lar seguro e sólido.
As abelhas não produziam apenas mel. Própolis, a
resina avermelhada usada pelas abelhas trabalhadoras como material de
construção, proporcionava um bálsamo curativo que era muito valorizado no
tratamento de feridas. Por outro lado, uma porção de cera de abelha alcançava
um preço ainda maior do que uma medida equivalente de mel. "Pegue um pouco de terra", dizia
outra receita para atrair um enxame de abelhas. "Salpique com a mão
direita sob o pé direito e diga: Mantenho você sob meu pé; eu a
encontrei!" Era um encantamento pagão, um precursor antigo e rival da
oração criada pela Igreja.
As palavras iniciais estabeleciam o direito do
proprietário ao enxame, da mesma forma como o moderno jogador de rúgbi finca os
pés na terra quando pega a bola e grita "Mark!" A etapa seguinte era
lançar um punhado de grãos de areia ou cascalho sobre o enxame e gritar:
Fiquem, mulheres vitoriosas, afundem
na terra!
Nunca voem livres para o bosque.
Seja interessada por meu bem
Como
cada homem é por comida e seu lar.
Os romanos também acreditavam que as abelhas estavam
partindo para a guerra contra uma colméia rival quando enxameavam. Os
anglo-saxões, no entanto, concluíram que a abelha principal em cada colônia era
uma fêmea. Também compreenderam que, quando as abelhas enxameavam, era uma
questão de proliferação e da
criação
de outra colônia. Na ausência de mel, outra fonte de doçura era a polpa
amassada das uvas que sobravam da produção de vinho. Era um mundo mais quente.
Os meteorologistas descrevem essa época medieval quente como "Pequeno
Ideal". Citam-na como a explicação para fenômenos como a explosão dos
vikings pela Rússia, França, Islândia e o noroeste do Atlântico.
Um manuscrito do século IX era dedicado
exclusivamente ao trovão e o que podia significar: "Em maio, o trovão
pressagia um ano de fome. (...) No mês de julho, o trovão significa colheitas
abundantes e o gado perecendo. (...) Se troveja no domingo, isso é considerado
um presságio de grande mortalidade de monges e freiras. (...) Da trovoada na
quarta-feira, não resta a menor dúvida de que pressagia a morte de prostitutas
ociosas e escandalosas."
O leitor moderno não pode deixar de especular sobre o
que passava pela mente do monge ou freira que lia essas predições e recordava,
por exemplo, a última vez em que ouvira uma trovoada num domingo, mas não vira nenhum
de seus colegas cair morto. Os augúrios exercem um eterno fascínio. Para os que
os levam a sério, nunca parece importar se a realidade fria prova que estavam
errados. No ano 1000, as pessoas concediam o benefício da dúvida aos aspectos
intangíveis de sua vida. Os antigos deuses ainda espreitavam os sulcos abertos
na Inglaterra anglo-saxônia. A palavra pagão vem de pagus, o latim para
"o campo". Era entre os pags ou rústicos que a antiga magia
ainda persistia. Quando o camponês saía para abrir os primeiros sulcos na
terra, em janeiro ou fevereiro, costumava dizer uma prece, ao se ajoelhar para
abrir um buraco raso na terra, onde punha o bolo que sua mulher assara:
Terra, Terra, Terra! Oh, Terra nossa
mãe!
Aquele que tudo pode, Senhor Eterno,
conceda A
estas terras um crescimento grande,
Com o trigo
abundante
e sempre forte.
O bolo era feito do mesmo cereal que o camponês
tencionava plantar agora. Beda relatou como fevereiro era popularmente
conhecido como "o mês dos bolos", por causa dos bolos ou placentae
"que nesse mês os ingleses ofereciam a seus deuses". Beda e os outros
cronistas monásticos não se sentiam inclinados a celebrar a herança pagã da
Inglaterra.
Gregório sugeriu a Agostinho que os antigos templos
pagãos da Inglaterra deviam ser convertidos em igrejas, "a fim de que as
pessoas possam continuar a recorrer aos lugares com que estão mais
acostumadas". Em conseqüência, existem hoje igrejas inglesas que datam da
Idade do Bronze. Em vez de oferecerem sacrifícios à Mãe Terra, os anglo-saxões
eram encorajados a dirigirem suas orações à Virgem Maria. Tendo aceitado o dia do
sol (Sun-day) e o dia da lua (Moon-day), a igreja também tolerou
o dia de Tiw (Tiw's-day), o dia de Woden (Woden's-day), o dia de
Thor (Tbor's-day) e o dia de Frig (Frig's day). Assim os dias da
semana ficaram sendo chamados em inglês, em homenagem aos antigos deuses
nórdicos Tiw, o deus da guerra, Woden, o pai dos deuses e da casa real de Essex
segundo Alfred, Thunor, o deus da trovoada, e Frig, a deusa do crescimento das
coisas e da fertilidade. O dia de Saturno (Saturday) era outro resquício
pagão... este dos romanos. O rei Aldwulf de East Anglia, um contemporâneo de
Beda, recordou como vira em sua infância o templo criado por seu antecessor,
rei Redwald, que queria se manter nas boas graças das duas religiões e mandou
construir dois altares, lado a lado. Num altar, o rei partilhava o pão e o
vinho, "o sagrado sacrifício de Cristo", enquanto no outro
sacrificava ao estilo antigo.
Beda
deixou bem claro que isso devia ser considerado uma tentativa ignóbil e
ignorante de servir a dois senhores. Nova magia pela antiga era a linguagem da
conversão. Bonifácio, claro e objetivo, deixou sua marca na Alemanha quando
cortou um bosque de oliveiras sagradas, usando a madeira para construir uma
nova igreja para Jesus. Os xamãs locais previram o desastre, mas nenhum raio se
abateu sobre a igreja. Não demorou muito para que Bonifácio presidisse
conversões em massa. A bela cruz de pedra de quatro metros e meio de altura em
Gosforth, Cumbria, tem esculpida uma panóplia de deuses nórdicos, com o deus do
mal Loki acorrentado por baixo de uma serpente venenosa, enquanto Woden repele
um lobo, no meio de um grupo de dragões... e a figura de Cristo crucificado
assoma no ápice da batalha, não tanto como o único deus, mas como o mais
poderoso. Na batalha entre o paganismo e o Cristianismo, o Cristianismo acabara
levando a melhor... e bem depressa. O desfile de conversões cristãs nos anos
finais do século tem outro paralelo moderno: depois de décadas de conflito
amargo e tenso entre duas ideologias poderosas, uma delas entrara em colapso à
aproximação do milênio, deixando a outra no comando da situação de uma maneira
incontestável, como há muito era pregado com fervor, mas que não parecia tão
óbvia quando a batalha estava no auge.
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