domingo, 25 de janeiro de 2015

melhores partes do "O Ano 1000"


      Cantar era uma linda maneira de dizer "Por favor, escute". O Deus da Idade Média era um Deus que interferia ativamente na vida diária. Um dos sermões pregados na capela podia muito bem partir de um incidente na vida do santo específico do dia, como o trampolim para algum ensinamento prático. O dia 5 de janeiro era dedicado a Simeão Estilita, o eremita que vivia no alto de uma coluna. Outros dias eram consagrados a Isidoro de Sevilha, que proclamara que devia haver uma catedral-escola em cada diocese; Santa Genevieva, que salvou Paris de Átila o Huno, e cuja vela foi apagada pelo demônio quando foi rezar à noite; São Luciano, que foi aprisionado por causa de sua fé pelo imperador Diocleciano; São Timóteo, um companheiro de São Paulo que foi apedrejado até a morte pelos pagãos; São Secundinus, que escreveu o mais antigo hino latino conhecido na Irlanda; e o eremita São Paulo de Tebas, que teria sobrevivido por mais de cem anos de devoção e austeridade no deserto.
      Cada herói ou heroína tinha sua lição para ensinar. Na Inglaterra era uma rede de lugares mágicos. O altar de cada igreja continha as relíquias físicas de pelo menos um santo. A origem da tradição pela qual muitas igrejas modernas são dedicadas a um santo determinado remonta ao princípio básico da convicção da Igreja Romana de que um santo está presente onde quer que se encontrem suas relíquias. O paraíso era visualizado como algo parecido com a corte real. Deus sentava ali em julgamento, como o rei, e dispensava mais atenção aos que podiam alcançar seu ouvido. Quando o rei Ethelbert de Kent recebeu o primeiro grupo de sacerdotes cristãos que traziam cumprimentos do Papa em Roma, no ano 597, exigiu que o encontro fosse ao ar livre, para que o vento dissipasse os encantamentos que pudessem tentar lhe lançar com sua magia estrangeira.
      Cinqüenta anos depois de sua morte, o culto a Beda, o Venerável, como um santo já fora consolidado pelas testemunhas locais de que suas relíquias haviam realizado curas milagrosas. A força dos ossos de Beda era tão grande que muitos os reivindicaram. No coração de Wessex, na grande catedral em Winchester, está o corpo de St. Swithin, bispo de Wessex em meados do século IX. Ele se tornou o centro de um culto movimentado um século depois de sua morte. Segundo Aelfric, o mestre-escola e grande prosador de seu tempo, os doentes iam para Winchester em vastos números para serem curados. "Num prazo de dez dias," registrou Aelfric, "duzentos homens foram curados; e tantos em doze meses que nenhum homem podia contá-los. O cemitério ficava lotado de aleijados, de tal maneira que não era fácil visitar a catedral.

      Como viveu e ensinou por mais de uma dúzia de anos à sombra do gigantesco Cerne Abbas, o grande deus pagão da fertilidade, com uma exuberante genitália esculpida na encosta de greda por cima da aldeia, não é de surpreender que o irônico Aelfric demonstrasse uma visão imparcial de certas alegações humanas ao contato com o sobrenatural: "Alguns sonhos são na verdade de Deus, mesmo quando os lemos em livros", escreveu ele. "Outros são do Diabo, por alguma impostura, procurando descobrir até que ponto pode perverter a alma." Mas Aelfric não tinha a menor dúvida sobre os milagres ocorridos no apinhado cemitério de Wessex no século X: "Todos ficaram tão milagrosamente curados em poucos dias que não se podia encontrar cinco homens doentes naquela vasta multidão. Aquela era uma época de fé. As pessoas acreditavam tão fervorosamente nos ossos de santos quanto muitos acreditam hoje que farelo de trigo, exercícios físicos ou a psicanálise podem aumentar a soma da felicidade humana. Os santos levaram vidas reais. Confrontaram seus princípios com absoluto destemor contra a adversidade... e muitos haviam vivido em tempos recentes, já que não existia um processo formal de canonização como acontece hoje.
      Um amado abade ou abadessa local podia se tornar um santo em sua localidade poucos anos depois de sua morte. Manifestações coletivas de pesar como a que acompanhou a morte de Diana, Princesa de Gales, em 1997, eram o primeiro passo para a santidade no ano 1000. O passo seguinte era o testemunho dos fiéis sobre a ocorrência de presságios e milagres. No ano 1000, os santos eram uma presença tão vital e dinâmica quanto qualquer bando de elfos ou demônios. Constituíam uma comunidade viva, para a qual se rezava, no meio da qual se vivia.
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