terça-feira, 10 de novembro de 2015

CHEGAMOS A NOVEMBRO




AS MULHERES E O PREÇO DE UMA CARÍCIA


— QUASE O FINAL DO ano — e ainda não houve um único desenho do Calendário de Trabalho de Julius que mostre mulheres trabalhando, divertindo-se ou desempenhando qualquer papel, trivial ou importante. Dezembro também não vai remediar o problema, já que o Calendário de Trabalho de Julius, como todos os outros documentos que restaram daquela época, era obra da sensibilidade masculina, operando num mundo em que a linguagem e a própria estrutura de pensamento eram formuladas em termos incontestavelmente masculinos.    Um documento do século XI fala dos descendentes de Adão e Eva como "descendendo de dois homens". Embora isso demonstre uma estrutura mental que pode nos parecer hoje como insensível ao sexo, também continha uma certa suposição de igualdade masculina-feminina. Um documento de 969 falava sobre uma terra perto de Worcester que pertencia a um homem chamado Elfweard: "Elfweard foi o primeiro homem...", dizia o documento.
Os reis anglo-saxões não tinham uma sucessão baseada na primogenitura. Todos os filhos do rei eram conhecidos como aethelings — dignos do trono — e nesse pool genético a família real escolhia o que parecia mais qualificado para a função. Era a maneira prática de manter a riqueza e proeminência do clã dominante.  A mãe que expandia o poder de seu clã merecia o respeito de toda a comunidade. É significativo que essa época tenha testemunhado o início na Inglaterra do culto da Virgem Maria, a mãe que criou o mais poderoso de todos os filhos.  Outra categoria feminina de mann que não tinha opção que não ser dura era a formada pelas mulheres que dirigiam os mosteiros da Inglaterra anglosaxônia.


Cerca de cinqüenta das comunidades religiosas fundadas no século VI eram casas duplas, em que homens e mulheres viviam e cultuavam lado a lado. Todos respondiam à abadessa, não ao abade.  Entre essas missionárias
pioneiras, a mais famosa foi a abadessa Hilda, que fundou (ou possivelmente refundou) a abadia de Whitby, na costa de Yorkshire.  Poucos anos depois de sua morte, em 680, Hilda já era aclamada como santa. Até hoje existe uma tradição devota de que os gansos migrantes que voam do Ártico para descansar no promontório próximo da antiga abadia de Whitby são peregrinos, prestando homenagem à sua memória. Por volta do ano 1000, havia pelo menos quinze igrejas inglesas dedicadas a Santa Hilda, com sua festa celebrada todos os anos a 17 de novembro.     Até meados do século X era rotineiro o casamento de padres. Os registros indicam que no início da década de 960 a catedral de Winchester era administrada por um grupo de cônegos, todos casados. Mas Dunstan, Ethelwold e os novos reformadores da igreja desaprovavam essa situação. O celibato era o caminho para o cônego moderno.   A aproximação do milênio testemunhou um novo elemento de ascetismo puritano, reclamando o controle da religião: a Igreja Babá Rigorosa. O crítico Ethelwold resolveu censurar a jovem Santa Edith de Wilton por um novo estilo de vestimenta, que considerava grandioso demais. "Cristo pediu o coração", disse ele.


"Tem toda razão, padre", respondeu Edith. "E eu lhe dei meu coração". Edith, que morreu com apenas vinte e dois anos de idade, depois de uma vida irrepreensível, pôde ter sido capaz de enfrentar o velho sacerdote porque era a filha de um rei, embora o produto da união do rei Edgar com Wulfrida, sua amante no Kent.   Ao final do século X, a humildade de Edith inspirara um culto de poços sagrados em Kent, Staffordshire e Herefordshire. As águas desses poços eram consideradas eficazes no tratamento de problemas de olhos.   Os casamentos anglo-saxões eram cerimônias populares tradicionais, que remontavam aos tempos pagãos. Um casal podia parar na entrada da igreja para uma bênção do padre, mas a essência da cerimônia era o ritual de seculares brindes, votos e discursos, com a participação do resto da aldeia.  Um código legal anglo-saxão declara que uma mulher pode sair do casamento por sua própria iniciativa, se assim quiser; e se ela ficar com os filhos e cuidar deles, também tinha o direito à metade dos bens.   Num mundo em que a ordem era incerta e as lojas virtualmente inexistentes, o trabalho do homem era proporcionar proteção, enquanto a mulher proporcionava roupas. Essa divisão de responsabilidade refletia-se nas coisas com que os anglo-saxões pagãos eram enterrados: os esqueletos masculinos são encontrados com espadas, lanças e escudos; as mulheres eram sepultadas com rocas, telas de tapeçaria e pequenas caixas de costura simbólicas, que continham agulhas, linha e até amostras de tecidos.  A medida que a igreja assumia o controle, um tom moralista era incluído na equação local: "Se uma mulher durante a vida do marido comete adultério com outro homem...", dizia a Lei 53 de Canuto, "seu marido legal ficará com todos os seus bens, e ela perderá seu nariz e orelhas."  Esse terrível regulamento — que não impunha uma penalidade similar para o homem adúltero — teve vida breve. A única outra lei inglesa a tratar o adultério com tanta brutalidade foi aprovada seiscentos anos depois, como parte da tentativa de Oliver Cromwell tornar a Inglaterra devota. Cada homem — e mulher — tinha seu preço, o chamado wergild.  Se um homem deitava com uma virgem que era uma escrava na família real, devia uma reparação de cinqüenta xelins.   Um homem que acariciava o seio de uma mulher livre, sem ser convidado, incorria numa multa de cinco xelins, enquanto jogar a mulher no chão, mas sem chegar a violá-la, custava dez xelins. O estupro era seis vezes mais grave. A violação de uma mulher livre exigia uma reparação de sessenta xelins.  As leis não exigiam expressamente que a noiva fosse virgem. Se o marido não tinha queixa, a lei não via necessidade de se intrometer. Mas o rei Aethelbert estipulou que o presente da manhã deveria ser devolvido pela esposa nos casos de fraude. Era uma proteção para o marido que pagara o presente da manhã a uma mulher que esperava uma criança de outro homem.  



O desenho do calendário para o mês de novembro talvez descreva a terrível penalidade aplicada aos que eram suspeitos de roubo. Mostra uma figura esquentando um ferro no fogo. A suposição óbvia pode ser a de que se trata de um ferreiro forjando alguma coisa, talvez uma ferradura.  A esquerda do desenho aparece uma pilha de tábuas. É bem possível que a figura ao lado, captada pelo artista no ato de carregar algumas tábuas, não tivesse boas intenções. Acusado de roubo, ele é levado ao ordálio por dois agentes de justiça em trajes cerimoniais, à direita do desenho, um dos quais segurando um pergaminho judicial enrolado.   O suspeito está agora descalço e estende as mãos para o macabro teste. Terá de segurar o ferro em brasa e dar nove passos. Depois, as queimaduras serão tratadas e permanecerão cobertas por uma semana. Se os ferimentos estiverem ficando bons, quando as bandagens forem removidas, ele será julgado inocente. Mas se os ferimentos estiverem infeccionados, o que pode muito bem resultar em sua morte de qualquer forma, ele sofrerá a penalidade para o roubo no ano 1000: o enforcamento até a morte.  Junto com o julgamento pelo ordálio, o enforcamento era o dissuasivo mais eficaz que se podia ter numa época sem polícia ou prisões. Não caia nas malhas da justiça, dizia o recado. Não vale o risco.  O sistema de wergild significava que os ricos podiam pagar por suas violações, ao preço de 125 libras de prata para cada vida humana. Assim, enquanto um nobre assassino podia evitar a pena de morte, pagando pela vida que tirara, era mais do que improvável que um ladrão tivesse recursos para qualquer restituição. Não sabemos se as mulheres eram enforcadas, da mesma maneira que os homens. Mas parece provável que fosse um aspecto da vida e morte no ano 1000 a que se aplicava a igualdade sexual.




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