segunda-feira, 7 de setembro de 2015

setembro - Ano 1000



SETEMBRO
PAGÃOS E PANNAGE
                Havia alguns javalis selvagens nas florestas da Inglaterra no ano 1000, assim como uns poucos lobos sobreviventes, mas muito mais numerosas eram as manadas de porcos que vagueavam livres pelas matas. Os aldeões começavam a recolher os porcos quando setembro anunciava a aproximação do inverno.
                Depois de concluída a colheita, nos tempos medievais mais antigos, cada lavrador e chefe de família tinha de calcular a equação básica da sobrevivência através do inverno. Quanto tempo a despensa duraria, que animais pareciam ter a possibilidade de consumir mais forragem do que sua expectativa de vida podia justificar? Setembro era o mês em que os animais doentes e velhos eram convertidos em salames e pastelões. O porco era um fator crucial nesses cálculos. O outono era a época em que os porcos ficavam mais gordos. Podia-se aproveitar virtualmente todas as partes do porco medieval, o qual, vagueando solto e muitas vezes acasalando com seus primos selvagens, tinha uma nítida aparência de javali. O revestimento do estômago proporcionava a tripa.
                Os intestinos ofereciam a pele para salames, enquanto o sangue era o principal ingrediente para o black pudding, um salame escuro feito com sangue de porco e pedaços de toucinho. Pannage era o termo usado para a dieta natural dos porcos que se alimentavam sem depender de seus donos. O valor dos bosques medievais era muitas vezes expresso em termos de quantos porcos um determinado setor era capaz de sustentar. Os animais de criação eram bem menores no ano 1000 do que são hoje... e eram também menores do que haviam sido seis séculos antes. Escavações arqueológicas revelam que os ossos de vacas, porcas e ovelhas vão se tornando cada vez menores ao longo dos séculos.


                Voltam a ficar maiores com a introdução dos princípios de criação econômica no final da Idade Média. Os anglo-saxões amavam seus animais. Assim como podiam reconhecer os animais dos vizinhos, também costumavam ter um nome carinhoso para cada criatura em sua família ampliada. Teriam adorado os animais antropomórficos de Walt Disney. Seus poemas sentiam prazer em atribuir características humanas, como determinação e astúcia, aos membros do reino animal. Consideravam-nos companheiros de ocupação de um mundo em que os interesses humanos e animais se misturavam.
                Os filhos da Mãe Natureza eram todos seus irmãos e irmãs. Setembro era o mês em que o pomar (orchard em inglês) produzia a sua melhor colheita. A abadia de Ely era famosa por seus vinhedos, além de seus pomares e uma estufa em que cultivava diversas variedades de árvores frutíferas. Macieiras, pereiras, ameixeiras, figueiras, marmeleiros e amoreiras estavam incluídos na planta do jardim para um grande mosteiro projetado, embora nunca chegasse a ser construído, para os missionários irlandeses na margem do lago Constance, na Suíça.
                        A norma de São Bento para que os monges não consumissem carne foi interpretada pela maioria das comunidades como se referindo a animais de grande porte e quatro patas. Portanto, as aves eram consideradas fora da proibição, assim como os coelhos, que os normandos levaram para a Inglaterra depois de 1066. Mas a dieta monástica ainda tendia a ser não-carnívora, com um elevado conteúdo de laticínios e uma saudável proporção de nozes. Também cultivavam cebola, alho-poró, aipo, rabanete, cenoura, alho, cebolinha, pastinaca, repolho, salsa, endro, cerefólio, coentro, papoula e alface. Esses frutos e hortaliças eram quase que, com certeza, mais saborosos do que seus equivalentes modernos, mas também, como o gado do ano 1000, eram consideravelmente menores.
                Não havia espinafre. Este só apareceu nas hortas européias quando as sementes foram trazidas pelos Cruzados, no século XII. Brócolis, couve-flor, vagem e couve-de-bruxelas foram desenvolvidos em séculos posteriores, por gerações subseqüentes de horticultores. Também não havia batata e tomate. Embora os livros de receitas descrevam possets (bebida de leite quente, cerveja e vinho, para curar resfriados) e infusões de ervas, não existia nenhum dos estimulantes que ainda seriam importados, chá, café e chocolate. A maior falha dietética pelos padrões modernos era a ausência de qualquer tipo de açúcar. Registros venezianos descrevem um carregamento de cana-de-açúcar chegando a Veneza pela primeira vez em 996, provavelmente da Pérsia ou Egito,96 mas o açúcar não foi mais importado para a Europa até o final da Idade Média. Não dominou o paladar europeu, com sua atração por doces, até o desenvolvimento das plantações de cana no Caribe, no século XVII. Os esqueletos anglo-saxões são notáveis pela ausência de cáries dentária O mel era a principal fonte de doçura no ano 1000.
                Era tão precioso que quase virou uma moeda corrente na Inglaterra medieval. Era um dia de sorte quando um enxame de abelhas se instalava em seu telhado de colmo:
Há um enxame de abelhas lá fora,
Voe para cá, meu pequeno gado,
Em paz abençoada, sob a proteção de Deus,
Venha para o lar seguro e sólido.
                As abelhas não produziam apenas mel. Própolis, a resina avermelhada usada pelas abelhas trabalhadoras como material de construção, proporcionava um bálsamo curativo que era muito valorizado no tratamento de feridas. Por outro lado, uma porção de cera de abelha alcançava um preço ainda maior do que uma medida equivalente de mel.  "Pegue um pouco de terra", dizia outra receita para atrair um enxame de abelhas. "Salpique com a mão direita sob o pé direito e diga: Mantenho você sob meu pé; eu a encontrei!" Era um encantamento pagão, um precursor antigo e rival da oração criada pela Igreja.
                As palavras iniciais estabeleciam o direito do proprietário ao enxame, da mesma forma como o moderno jogador de rúgbi finca os pés na terra quando pega a bola e grita "Mark!" A etapa seguinte era lançar um punhado de grãos de areia ou cascalho sobre o enxame e gritar:
Fiquem, mulheres vitoriosas, afundem na terra!
Nunca voem livres para o bosque.
Seja interessada por meu bem
Como cada homem é por comida e seu lar.


                Os romanos também acreditavam que as abelhas estavam partindo para a guerra contra uma colméia rival quando enxameavam. Os anglo-saxões, no entanto, concluíram que a abelha principal em cada colônia era uma fêmea. Também compreenderam que, quando as abelhas enxameavam, era uma questão de proliferação e da
criação de outra colônia. Na ausência de mel, outra fonte de doçura era a polpa amassada das uvas que sobravam da produção de vinho. Era um mundo mais quente. Os meteorologistas descrevem essa época medieval quente como "Pequeno Ideal". Citam-na como a explicação para fenômenos como a explosão dos vikings pela Rússia, França, Islândia e o noroeste do Atlântico.
                Um manuscrito do século IX era dedicado exclusivamente ao trovão e o que podia significar: "Em maio, o trovão pressagia um ano de fome. (...) No mês de julho, o trovão significa colheitas abundantes e o gado perecendo. (...) Se troveja no domingo, isso é considerado um presságio de grande mortalidade de monges e freiras. (...) Da trovoada na quarta-feira, não resta a menor dúvida de que pressagia a morte de prostitutas ociosas e escandalosas."
                O leitor moderno não pode deixar de especular sobre o que passava pela mente do monge ou freira que lia essas predições e recordava, por exemplo, a última vez em que ouvira uma trovoada num domingo, mas não vira nenhum de seus colegas cair morto. Os augúrios exercem um eterno fascínio. Para os que os levam a sério, nunca parece importar se a realidade fria prova que estavam errados. No ano 1000, as pessoas concediam o benefício da dúvida aos aspectos intangíveis de sua vida. Os antigos deuses ainda espreitavam os sulcos abertos na Inglaterra anglo-saxônia. A palavra pagão vem de pagus, o latim para "o campo". Era entre os pags ou rústicos que a antiga magia ainda persistia. Quando o camponês saía para abrir os primeiros sulcos na terra, em janeiro ou fevereiro, costumava dizer uma prece, ao se ajoelhar para abrir um buraco raso na terra, onde punha o bolo que sua mulher assara:
Terra, Terra, Terra! Oh, Terra nossa mãe!
Aquele que tudo pode, Senhor Eterno, conceda A
estas terras um crescimento grande, Com o trigo
abundante e sempre forte.
                O bolo era feito do mesmo cereal que o camponês tencionava plantar agora. Beda relatou como fevereiro era popularmente conhecido como "o mês dos bolos", por causa dos bolos ou placentae "que nesse mês os ingleses ofereciam a seus deuses". Beda e os outros cronistas monásticos não se sentiam inclinados a celebrar a herança pagã da Inglaterra.
                Gregório sugeriu a Agostinho que os antigos templos pagãos da Inglaterra deviam ser convertidos em igrejas, "a fim de que as pessoas possam continuar a recorrer aos lugares com que estão mais acostumadas". Em conseqüência, existem hoje igrejas inglesas que datam da Idade do Bronze. Em vez de oferecerem sacrifícios à Mãe Terra, os anglo-saxões eram encorajados a dirigirem suas orações à Virgem Maria. Tendo aceitado o dia do sol (Sun-day) e o dia da lua (Moon-day), a igreja também tolerou o dia de Tiw (Tiw's-day), o dia de Woden (Woden's-day), o dia de Thor (Tbor's-day) e o dia de Frig (Frig's day). Assim os dias da semana ficaram sendo chamados em inglês, em homenagem aos antigos deuses nórdicos Tiw, o deus da guerra, Woden, o pai dos deuses e da casa real de Essex segundo Alfred, Thunor, o deus da trovoada, e Frig, a deusa do crescimento das coisas e da fertilidade. O dia de Saturno (Saturday) era outro resquício pagão... este dos romanos. O rei Aldwulf de East Anglia, um contemporâneo de Beda, recordou como vira em sua infância o templo criado por seu antecessor, rei Redwald, que queria se manter nas boas graças das duas religiões e mandou construir dois altares, lado a lado. Num altar, o rei partilhava o pão e o vinho, "o sagrado sacrifício de Cristo", enquanto no outro sacrificava ao estilo antigo.
                        Beda deixou bem claro que isso devia ser considerado uma tentativa ignóbil e ignorante de servir a dois senhores. Nova magia pela antiga era a linguagem da conversão. Bonifácio, claro e objetivo, deixou sua marca na Alemanha quando cortou um bosque de oliveiras sagradas, usando a madeira para construir uma nova igreja para Jesus. Os xamãs locais previram o desastre, mas nenhum raio se abateu sobre a igreja. Não demorou muito para que Bonifácio presidisse conversões em massa. A bela cruz de pedra de quatro metros e meio de altura em Gosforth, Cumbria, tem esculpida uma panóplia de deuses nórdicos, com o deus do mal Loki acorrentado por baixo de uma serpente venenosa, enquanto Woden repele um lobo, no meio de um grupo de dragões... e a figura de Cristo crucificado assoma no ápice da batalha, não tanto como o único deus, mas como o mais poderoso. Na batalha entre o paganismo e o Cristianismo, o Cristianismo acabara levando a melhor... e bem depressa. O desfile de conversões cristãs nos anos finais do século tem outro paralelo moderno: depois de décadas de conflito amargo e tenso entre duas ideologias poderosas, uma delas entrara em colapso à aproximação do milênio, deixando a outra no comando da situação de uma maneira incontestável, como há muito era pregado com fervor, mas que não parecia tão óbvia quando a batalha estava no auge.

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